Em um contexto marcado por uma guerra prolongada, surgem questões profundas que vão além do campo de batalha, chegando ao cerne da sociedade. Essa realidade é claramente exemplificada na vida de Eliran Mizrahi, um cidadão israelense de 40 anos e pai de quatro filhos, que teve sua vida transformada após ser chamado para atuar em Gaza após o brutal ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023. O que deveria ser uma missão de proteção transformou-se em um pesadelo que, seis meses depois, culminou em sua morte por suicídio. A tragédia de Mizrahi, como muitos outros casos semelhantes, revela o peso emocional que o combate e a experiência da guerra podem impor sobre os soldados e suas famílias, e serve como um indicativo do sofrimento coletivo que o conflito em Gaza tem causado, não apenas às suas vítimas diretas, mas também aos envolvidos na luta.
O impacto emocional da guerra em soldados de combate
De acordo com relatos familiares, Mizrahi voltou do conflito com sinais claros de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e enfrentou dificuldades significativas em reintegrar-se à vida familiar e civil. Seu estado mental deteriorou-se rapidamente após o retorno. Sua mãe, Jenny Mizrahi, expressou a dor da perda, afirmando que “ele saiu de Gaza, mas Gaza não saiu dele. E ele morreu depois disso, por causa do pós-trauma”. Essa afirmação resume a gravidade da situação vivida por muitos soldados que, como Eliran, se viram forçados a encarar horrores que a sociedade não pode compreender totalmente. Apesar dos esforços da Força de Defesa de Israel (IDF), que afirmou fornecer cuidados a milhares de soldados afetados por traumas e doenças mentais, ainda não há clareza sobre o número exato de suicídios ocorridos após o retorno dos soldados do front.
Os dados relativos ao conflito são alarmantes, com mais de 42 mil mortos em um ano de guerra em Gaza, conforme informações do ministério da saúde da faixa, revelando que a maioria das fatalidades envolve mulheres e crianças. O conflito se estende, tornando-se o mais longo desde a criação do estado de Israel e, conforme se amplia para outras regiões, como o Líbano, muitos soldados demonstram preocupação com a possibilidade de serem convocados novamente. A situação é complexa e preocupante, pois muitos soldados sentem um profundo receio em relação ao futuro e à condução das operações militares pelo governo israelense.
A realidade dos relatos e a luta interna dos soldados
O cenário em Gaza é retratado como uma batalha por sobrevivência, onde as memórias de atrocidades vividas pelos soldados podem se transformar involuntariamente em fardos emocionais que não desaparecem. Esta realidade é reforçada por aberturas limitadas a relatos de jornalistas estrangeiros, o que dificulta a obtenção de um panorama real sobre a vida dos civis palestinos e o impacto do conflito sobre os soldados israelenses. Depoimentos de soldados retornados, como o medic da IDF que falou de maneira anônima, indicam que muitos enfrentam um dilema moral ao lidarem com a desconfiança em relação aos civis palestinos. Percebem que sua percepção muda quando se deparam com a realidade das vidas civis em meio ao caos da guerra.
Jovens soldados, como Mizrahi, são colocados em situações extremas, nas quais são expostos a decisões agonizantes e traumas visuais que são impossíveis de ignorar. A experiência de um dos colegas de Mizrahi ressalta a brutalidade do enfrentamento em Gaza, onde era comum ver corpos e a necessidade de operar suas máquinas em meio aos destroços e sangue. Os testemunhos de soldados que enfrentaram eventos extremos dentro da cidade revelam uma luta contínua e manifestam visões perturbadoras que se transformam em memórias penosas e contínuas, deixando cicatrizes profundas que podem acompanhá-los pelo resto da vida.
Um sistema de saúde mental em estresse
Os desafios enfrentados pelos soldados que retornam do conflito são acentuados por um sistema de saúde mental que, apesar de oferecer alguma assistência, ainda luta para atender à demanda crescente de soldados em necessidade. Estima-se que entre 35% e 40% dos soldados que são removidos de combate emergem com reações psicológicas ou diagnósticos de TEPT. Com mais de 14 mil soldados esperados para serem tratados até o final do ano, a situação é alarmante. Além disso, dados do ministério da saúde revelam que a taxa de suicídio entre a população em geral em Israel ultrapassa as 500 mortes anuais, com uma parcela ainda maior de tentativas.
Esses problemas, no entanto, não são apenas números. Eles representam vidas quebradas e histórias de perda que afligem as famílias israelenses, como a de Eliran Mizrahi, em cuja casa a dor da sua morte é sentida em cada lembrança do filho amado. Após o suicídio de Eliran, os seus familiares se tornaram defensores da conscientização sobre o impacto delicado do TEPT, buscando trazer à luz as complexidades emocionais que emergem desse tipo de experiência de combate. Eles ressaltam a necessidade urgente de um suporte mais robusto e acessível para aqueles que, como Eliran, voltam do campo de batalha para enfrentar um tipo diferente de luta, a guerra interna que não termina com o cessar-fogo.
O peso da repressão e a busca por recuperação
A sociedade israelense, com suas tensões internas e a pressão constante de um estado em guerra, já está lidando com suas convicções e valores fundamentais. Os líderes políticos têm frequentemente vinculado a ideia de auto-defesa nacional a uma narrativa que considera a guerra a única solução diante das ameaças a Israel. No entanto, os efeitos psicológicos da guerra são igualmente devastadores e merecem ser discutidos abertamente. Para os soldados, o retorno à vida normal é um processo repleto de obstáculos que vão desde a adaptação emocional até a reintegração social e familiar.
Jaqueline Becker, psicóloga e especialista em saúde mental, sublinha que é essencial romper o estigma em relação ao TEPT e oferecer um espaço seguro onde soldados possam partilhar suas experiências sem medo de julgamento. O caminho para a recuperação não é linear, e faz-se necessária uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados por aqueles que foram chamados a proteger seu país e seus ideais. Assim, a história de Eliran Mizrahi não se limita a uma tragédia individual, mas reflete uma realidade que milhões de pessoas enfrentam em contextos de conflito global.
O legado de Eliran, e de muitos como ele, serve como um apelo à compaixão e ao entendimento sobre as complexidades do sofrimento causado pela guerra. Um chamado à ação para que se proporcionem estruturas de apoio adequadas e um espaço seguro para trazer à luz o que o trauma pode fazer a um ser humano, que por fim, ainda busca um retorno à normalidade e um futuro repleto de esperança.