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Pesquisadores fizeram uma descoberta intrigante ao encontrar resíduos de drogas psicodélicas, fluidos corporais e álcool dentro de uma caneca ritual de 2.000 anos, indicando que os antigos egípcios consumiam bebidas alucinógenas durante rituais sagrados. Esta revelação é uma janela fascinante para práticas religiosas que datam de longas eras e que foram envoltas em mistério ao longo dos anos.
Pela primeira vez, cientistas conseguiram identificar assinaturas químicas das misturas líquidas consumidas de canecas decoradas com a cabeça de Bes, uma divindade egípcia antiga associada à fertilidade, proteção, cura medicinal e purificação mágica. Os utensílios em forma de Bes foram produzidos em um longo período no Egito, no entanto, apenas um número limitado sobreviveu e todos eles foram encontrados em contextos arqueológicos distintos, o que acrescenta um ao seu mistério.
Os novos achados, divulgados em 13 de novembro na revista Scientific Reports, resultaram de um estudo sobre o resíduo encontrado em uma caneca de Bes que atualmente está em exibição no Museu de Arte de Tampa. Esta descoberta lança uma luz sobre os antigos hábitos de consumo e as complexas interações sociais que ocorreram no Egito Antigo.
“Por muito tempo, os egiptólogos especularam sobre o que as canecas com a cabeça de Bes poderiam ter sido usadas, como água sagrada, leite, vinho ou cerveja”, afirmou Branko van Oppen, coautor do estudo e curador de arte grega e romana no Museu de Arte de Tampa. “Os especialistas não sabiam se essas canecas eram utilizadas na vida cotidiana, para propósitos religiosos ou em rituais mágicos”. Essa incerteza histórica trouxe um elemento de curiosidade à pesquisa arqueológica.
Desvendando substâncias antigas
Os pesquisadores sempre foram fascinados pelas canecas de Bes precisamente porque havia pouco contexto para entender como os objetos eram usados, dificultando a formulação de hipóteses sobre seus papéis nos rituais ou o conteúdo que transportavam. Cada novo estudo contribui para a construção de um quadro mais claro da vida e dos costumes religiosos dos antigos egípcios.
“De modo geral, os vasos de Bes não eram artefatos comuns, mas sim objetos rituais que eram fabricados em uma quantidade limitada e adquiridos apenas por aqueles que adoravam Bes e participavam dos rituais em torno dele”, disse Tanasi. “Provavelmente, essas pessoas ficaram com os vasos após serem usados para realizar os rituais, como um lembrete de que a cerimônia foi realmente realizada”.
Tanasi e sua equipe exploraram o mistério da caneca como parte de um estudo maior sobre a nutrição no Mediterrâneo antigo, focando no artefato de Bes que foi doado ao Museu de Arte de Tampa em 1984. Após raspar as paredes da caneca, os cientistas pulverizaram a amostra resultante e determinaram uma espécie de receita com base nas substâncias que mancharam a xícara com resíduos sobrepostos.
A equipe de pesquisa esperava encontrar os restos de uma bebida alcoólica potente dado o pequeno tamanho do recipiente, que tinha 4,5 centímetros de altura e poderia conter 125 mililitros. No entanto, os pesquisadores ficaram surpresos com a mistura variada. Essa complexidade revela a sofisticação com que os antigos egípcios abordavam a criação de suas bebidas rituais.
Sua análise detectou quatro categorias de substâncias: uma base alcoólica, agentes de sabor, fluidos corporais humanos e ingredientes medicinais e psicotrópicos. Esses elementos levantam questões fascinantes sobre as práticas rituais e o conhecimento botânico avançado dos antigos egípcios.
A detecção de leveduras de fermentação sugere que a mistura tinha uma base de cerveja ou vinho, que foi enriquecida com sabores provenientes de mel e possivelmente geleia real, sementes de gergelim, pinhões, alcaçuz e uvas. Os antigos egípcios costumavam utilizar uvas para fazer bebidas que se assemelhassem ao sangue, segundo o estudo. Isso nos leva a refletir sobre as práticas culturais e os significados que poderiam estar atrelados a essas escolhas.
Os fluidos corporais foram possivelmente uma mistura de sangue, leite materno e muco, que podem ter sido vaginais, nasais ou saliva, disseram os pesquisadores, e acreditam que esses foram adicionados de forma deliberada com base em suas concentrações. Esta descoberta, ao mesmo tempo desconcertante e intrigante, nos traz uma nova perspectiva sobre como os antigos egípcios conectavam rituais e substâncias do corpo humano em suas práticas espirituais.
E entre as plantas incluídas estavam a lírio azul egípcio e a rue síria, que possuem propriedades alucinógenas, medicinais, intoxicantes e sedativas que podem alterar a percepção e aumentar experiências visionárias, disse Tanasi. Além disso, foram identificadas espécies da planta Cleome, conhecidas por induzirem o parto ou, em doses altas, o aborto. A pluralidade de substâncias revela um profundo entendimento das propriedades das plantas por parte dos antigos egípcios.
“Esta pesquisa nos ensina sobre os rituais mágicos no período greco-romano no Egito,” disse van Oppen. “Os egiptólogos acreditam que as pessoas visitavam as chamadas Câmaras de Bes em Saqqara quando desejavam confirmar uma gravidez bem-sucedida, pois as gravidezes no mundo antigo eram repletas de perigos. Assim, essa combinação de ingredientes pode ter sido utilizada em um ritual mágico que induz visões de sonho dentro do contexto desse período perigoso de parto.”
Registros escritos, iconografia e evidências arqueológicas de sementes e plantas carbonizadas mostraram que os egípcios estavam familiarizados com as plantas e os efeitos colaterais que resultavam de seu consumo, afirmou Tanasi. É uma contribuição valiosa para a compreensão de um legado espiritual complexo.
“Ficamos surpresos com a receita complexa da mistura e chocados com a descoberta dos fluidos humanos que acrescentaram um novo ângulo religioso/mágico,” comentou Tanasi. “As substâncias identificadas provavelmente induziram visões oníricas, aumentaram estados meditativos e possivelmente euforia. A experiência dos rituais deve ter sido intensa e transformadora para os envolvidos”.
Estudar amostras químicas de outras canecas de Bes no futuro pode revelar se os recipientes foram usados durante eventos singulares ou se foram parte de uma prática amplamente disseminada, escreveram os autores do estudo. É uma possibilidade empolgante que pode levar a uma revolução na compreensão das cerimônias e práticas religiosas do Antigo Egito.
Avançando, a equipe espera realizar análises semelhantes em exemplos adicionais de canecas de Bes em outros museus para determinar se todos os vasos continham a mesma receita. Essa pesquisa poderá abrir novas portas para compreendermos melhor o papel cultural e espiritual dos ritmos das sociedades antigas.
Rituais egípcios de ‘embriaguez’
A identificação de elementos inorgânicos, orgânicos e psicotrópicos a partir da caneca de Bes é uma descoberta bem-vinda, disse a doutora Betsy Bryan, professora emérita de Arte e Arqueologia Egípcia da Universidade Johns Hopkins, que não participou do novo estudo. É evidente que o papel dos rituais, incluindo a utilização de substâncias alucinógenas, era significativo nas cerimônias religiosas egípcias.
Há mais variação no tamanho das canecas de Bes do que o notado no estudo, afirmou Bryan, o que poderia certamente impactar a dosagem e o propósito dos alucinógenos. Isso levanta questionamentos sobre como as proporções eram cuidadosamente medidas e para que finalidade eram utilizadas.
“Se os autores demonstraram corretamente os conteúdos, então os medicamentos indutores de sonhos foram misturados tanto com mel quanto com leite materno, o que certamente seria mais compatível com ajudar mulheres durante o parto ou na lactação”, disse Bryan em um email. “Um copo pequeno talvez tenha sido usado por uma mulher buscando ajuda do sacerdote/mágico do templo. Os copos maiores podem ter contido líquidos consumidos por sacerdotes ou outros congregantes com necessidades diferentes”. Essa diversidade no uso ilustra a complexidade dos rituais envolvidos.
Determinar as designações antigas egípcias para as plantas usadas na receita, com exceção do conhecido lírio aquático egípcio, será crucial para tentar identificar receitas de templos greco-romanos, comentou Bryan. Isso se enviaja um caminho fascinante para explorar as conexões entre a botânica antiga e a prática ritual.
O lírio azul foi notado tanto em evidências textuais quanto artísticas, sugerindo que era adicionado às bebidas alcoólicas, disse Caitie Barrett, professora associada no departamento de clássicos da Universidade Cornell. Barrett não participou do novo estudo. Essa intersecção entre arte, texto e prática ritual nos ajuda a entender melhor a cultura antiga.
“A embriaguez desempenhou um papel ritual importante em alguns festivais egípcios antigos, especialmente aqueles associados à inundação do Nilo”, disse Barrett. A natureza interligada da religião e das colheitas era complexa e profundamente significativa para a espiritualidade da sociedade egípcia.
As águas da inundação irrigavam e fertilizavam os campos para possibilitar o crescimento de novas colheitas, mas também estavam associadas à deusa do Olho do Sol, às vezes identificada como Hathor. Portanto, o papel da embriaguez não era meramente recreativo, mas punha-se como um suporte a momentos de acesso ao sagrado.
Ofertas alcoólicas seriam apresentadas a Hathor durante as inundações, incluindo como parte de qualquer “Festival da Embriaguez” realizado para apaziguá-la, afirmou Barrett. A adoração à deusa era um elemento central nos rituais de fertilidade e proteção.
“Temos representações desses festivais em cenas de tumbas que mostram banqueteiros bebendo pesadamente, afirmando que querem ficar embriagados o mais rápido possível e até vomitando quando exageram,” disse Barrett. “Bes, e outros deuses que se assemelham a Bes, muitas vezes atuam como acompanhantes de Hathor na arte e religião egípcia. Portanto, parece possível que alguns vasos de Bes tenham sido usados em rituais hathóricos”.