A literatura sempre foi um espaço para a reflexão e a crítica social, e não há como negar que o mundo atual clama por vozes que tenham a habilidade de expressar as fragilidades humanas e do nosso planeta. Neste contexto, a escritora britânica Samantha Harvey conquistou o tão almejado Prêmio Booker de 2024 com sua obra “Orbital”, uma narrativa poderosa que se desenrola a bordo da Estação Espacial Internacional e provoca questionamentos sobre a beleza e a vulnerabilidade da Terra. A vitória foi anunciada em uma cerimônia em Londres, onde a autora recebeu um prêmio monetário de £50.000 (cerca de $64.000), solidificando seu lugar como uma das vozes mais relevantes da literatura contemporânea.

“Orbital” é descrito pela própria Harvey como um “pastoral espacial”, uma obra que explora a vida de seis astronautas que vivem em um ambiente fisicamente constrito, marcado pelo isolamento e pela contemplação. A autora começou a escrever durante os rigorosos períodos de lockdown impostos pela pandemia de Covid-19, o que, de certo modo, parece ter influenciado na criação de um espaço fictício que reflete as limitações e os desafios enfrentados pelo ser humano em tempos de crise. A narrativa acompanha os astronautas enquanto eles experienciam um ciclo incessante de 16 nasceres e 16 pôr do sol ao longo de um único dia, absorvendo as impressionantes e cambiantes vistas do nosso planeta.

Em suas palavras, Harvey comparou o ato de observar a Terra do espaço a uma criança que vê o próprio reflexo pela primeira vez: “Olhar para a Terra a partir do espaço é como uma criança olhando para um espelho e percebendo pela primeira vez que a pessoa no espelho é ela mesma”, argumentou, enfatizando que o que fazemos ao nosso planeta, de certa forma, fazemos a nós mesmos. Esta observação traz à tona a relevância da discussão sobre as consequências das ações humanas em relação ao meio ambiente, um tema que, embora não seja o foco central do livro, está implicitamente presente.

Durante o pronunciamento na entrega do prêmio, Harvey dedicou sua vitória a todos aqueles que se manifestam em prol da Terra e dos direitos humanos. “Este prêmio é para todas as pessoas que falam a favor da paz e do bem-estar do nosso planeta. Faço isso por e para vocês”, declarou, reforçando o impacto coletivo que as narrativas podem ter na sociedade.

A escolha de “Orbital” como vencedora do Booker foi influenciada por Edmund de Waal, artista e escritor que presidiu o painel de jurados. De Waal não hesitou em classificar a obra como um “romance milagroso”, que consegue tornar nosso mundo ao mesmo tempo familiar e novo. Gaby Wood, CEO da Fundação Booker, comentou que, em um ano repleto de crises geopolíticas e previsões de um aumento das temperaturas globais, “Orbital” se apresenta como uma obra “esperançosa, oportuna e intemporal”. Essa característica é especialmente significativa em tempos incertos, onde a literatura pode agir como um porto seguro, capturando o complexo e frequentemente tenso estado da humanidade.

Com uma trajetória de quatro romances publicados previamente e um livro sobre insônia, Samantha Harvey se tornou a primeira escritora britânica a vencer o Booker desde 2020. É importante notar que o Prêmio Booker é aberto a autores de qualquer nacionalidade que escrevem em inglês, ostentando um histórico de transformação na carreira de escritores. Vencedores anteriores incluem gigantes da literatura como Ian McEwan, Margaret Atwood, Salman Rushdie e Hilary Mantel. Com a vitória, Harvey é apresentada ao público sob um novo e brilhante foco, sua obra se destacando em um campo competitivo e diverso.

A narrativa de Harvey tem apenas 136 páginas na edição de brochura no Reino Unido, tornando-se uma das mais curtas a receber o Prêmio Booker. De Waal destacou a clareza e fluidez da prosa de Harvey, afirmando que “este é um livro que recompensa a leitura atenta”, um elogio significativo que ressoe com os leitores que desejam se aprofundar nas nuances da obra. A jornada para a escolha do vencedor foi intensa, com o painel jurando passar um dia inteiro deliberando sobre a escolha, finalmente chegando a um consenso unânime entre as seis finalistas, que representavam uma diversidade de vozes literárias de países como Canadá, Estados Unidos, Austrália e Países Baixos.

Embora o escritor norte-americano Percival Everett tivesse sido considerado o favorito pelas casas de apostas com sua obra “James”, que revisita “O grande rio” do ponto de vista do personagem Jim, a escolha de Harvey encerrou as especulações e acendeu as discussões sobre as potencialidades e perspectivas da literatura contemporânea. Ao todo, cinco outros finalistas se destacaram ao lado de Harvey: o intrigante “Creation Lake”, de Rachel Kushner; o poético “Held”, de Anne Michaels; a saga australiana “Stone Yard Devotional”, de Charlotte Wood; e “The Safekeep”, de Yael van der Wouden, primeira autora holandesa a figurar entre os finalistas do prêmio.

Falando ainda sobre a inclusão, Harvey é a primeira mulher a ganhar o prêmio desde 2019, em um ano que conta com a maior quantidade de mulheres na lista de finalistas na história de 55 anos do prêmio. De Waal enfatizou que questões de gênero e nacionalidade não influenciaram de forma alguma a decisão dos jurados. “Não houve absolutamente nenhuma questão de caixas a serem marcadas ou de agendas. O foco estava simplesmente no romance”, destacou ele, em declaração durante a cerimônia realizada em um antigo mercado de peixe vitoriano no centro de Londres.

Desde sua fundação em 1969, o Booker Prize se tornou um símbolo de prestígio, sendo aberto a romances escritos originalmente em inglês e publicados no Reino Unido ou na Irlanda. O vencedor do ano passado foi o escritor irlandês Paul Lynch, que recebeu o prêmio por “Prophet Song”, uma distopia pós-democrática. Durante a cerimônia, Lynch teve a honra de entregar à Harvey o troféu do Booker, alertando-a de que sua vida mudaria drasticamente após ganhar visibilidade graças ao prêmio.

Emocionada, Harvey expressou sua gratidão pela conquista, mas também manteve os pés no chão. Ao ser perguntada sobre seus planos para o prêmio em dinheiro, ela revelou que destinaria parte para pagar impostos, mas que também queria comprar uma nova bicicleta e, quem sabe, um passeio ao Japão. Sua sinceridade e simplicidade em relação à fama e ao prêmio nos lembram que, por trás de grandes conquistas, existem pessoas reais, com sonhos simples e desejos genuínos de crescimento e exploração.

Similar Posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *