Como trazer à vida uma das cidades mais queridas da América Latina, que possui um século de história, mas nunca existiu? Essa era a tarefa que aguardava a equipe de produção da série “Cem anos de solidão”, uma adaptação muito esperada do livro amplamente elogiado como uma das maiores obras literárias do século 20. Escrito em 1967 pelo autor colombiano ganhador do Prêmio Nobel, Gabriel García Márquez, o romance acompanha sete gerações da família Buendía, que se entrelaçam com os destinos de seu lar, Macondo.
Os primeiros quadros da série já transportam os espectadores para Macondo. O Coronel Aureliano Buendía, com seu olhar intenso, encena coragem diante de um pelotão de fuzilamento, em um dia claro, com um fundo de parede de estuque branco e manchas de sangue. Essa representação inicial densa e dramática não apenas introduz o drama familiar, mas também a efervescência de uma cidade que, embora fictícia, reflete a complexidade do trauma humano ao longo da história, marcada por guerras e colonizações.
Como um dos mais famosos trabalhos do gênero realismo mágico, o cenário do livro está repleto de ocorrências sobrenaturais e oníricas, que, curiosamente, são tratadas com naturalidade. Desde o início, uma praga de insônia afeta os moradores, mergulhando-os em um nevoeiro de perda de memória a curto prazo; mais adiante, um mero gotejamento de sangue se torna um convite para a matriarca Úrsula, que é alertada sobre uma morte perturbadora.
Filmada inteiramente na Colômbia, com a aprovação da família do autor, a série terá duas temporadas e estreará no dia 11 de dezembro. O projeto é uma ambiciosa produção que, segundo a Netflix, é uma das maiores da história da América Latina. Durante as filmagens, foram construídos conjuntos de cenário em ampla escala e elaborados trajes autênticos do século XIX e do início do século XX. “Cem anos de solidão” se passa em uma época específica da história colombiana, o que exige um tratamento cuidadoso, digno de uma peça de época, afirmou a designer de produção Bárbara Enríquez em uma chamada de vídeo com a CNN.
A construção meticulosa de Macondo e suas lições da história real
Embora Macondo nunca tenha estado em nenhum mapa, sua presença perdurou na mente dos leitores por décadas. A proposta de renomear Aracataca, cidade natal de García Márquez, em 2006, falhou, mas a cidade do autor continua vivendo nas lembranças de muitos. A série não apenas se utiliza de uma narrativa rica, mas também se entrelaça com a realidade da história colombiana, utilizando locais autênticos para dar vida ao conto. Porém, sua construção exigiu esforços imensos. Desde a edificação de cenários que abrangem toda a cidade até a seleção de vestuário apropriado, cada detalhe foi minuciosamente elaborado para que a representação fosse o mais fiel possível à obra original.
A produção de “Cem anos de solidão” é um exemplo ótimo de como a pesquisa e a construção artesanal podem criar um universo cinematográfico que vive e respira a história. Enríquez, que assumi a direção de produção em 2022, continua o legado de sua predecessora, Eugenio Caballero, conhecido por seu trabalho em “O Labirinto do Fauno”. Juntas, elas criaram três cidades distintas, respeitando a época em que o romance se passa.
Os ambientes retratados vão desde a aldeia de barro e bambu até a próspera Macondo, com edificações cada vez mais sofisticadas e ricas à medida que a cidade se conecta com o mundo exterior, e é isso que realça o contraste entre a simplicidade inicial e a evolução dos personagens e suas histórias.
Como uma casa se tornou um personagem na narrativa
Um dos elementos centrais da narrativa é a casa dos Buendía, um espaço que evolui juntamente com seus inquilinos. Os quarenta cômodos da casa se enchem de personagens apaixonados e de projetos obsessivos de José Arcadio e Melquíades, mas também refletem os ciclos de vida e morte da família e as consequências das tragédias que enfrentam. A casa, para os personagens, se torna um reflexo de suas emoções – quando Úrsula está feliz, a casa está alegre; quando ela se entristece, todo o ambiente se torna obscuro e opressivo. Enríquez descreve a casa como um personagem em si mesma, notando que ela compartilha os humores e as reviravoltas emocionais dos Buendía.
Além da casa, um aspecto crucial da produção são os objetos que emergem em cena, como o primeiro bloco de gelo que aparece em Macondo, entregue por ciganos e que marca a vida de Aureliano. Esta cena, que incide diretamente no enredo, foi criada para capturar a reação do jovem personagem, refletindo na atuação autêntica do ator à medida que ele interage com o objeto de forma incrivelmente lógica e palpável. O gelo não é um mero adereço, mas representatividade pura, simbolizando a chegada de algo novo e extraordinário na vida simples dos habitantes de Macondo.
Com tudo isso, espera-se que a série não apenas atraia os fãs da obra de García Márquez, mas também crie uma nova geração de leitores que se sintam compelidos a explorar a profundidade da narrativa encontrada no livro. Afinal, o que é “Cem anos de solidão” se não a busca contínua pelo significado da vida e pelas ligações humanas que formam e moldam nossa existência?
A produção também reflete um esforço para capturar a essência dos tempos em que a história acontece através da indumentária, com um trabalho cuidadoso que envolve pesquisa e desenvolvimento criativo. “Foi preciso fazer escolhas de cores, texturas e formas baseadas em uma época que não se pode revisar nos registros históricos”, destacou a designer de figurinos Catherine Rodriguez. As vestimentas não somente são representações de suas respectivas épocas, mas também contam suas próprias histórias, revelando muito sobre seus personagens.
Uma jornada que promete deixar sua marca
Com a estreia se aproximando, tanto a equipe como os produtores expressaram uma combinação de orgulho e ansiedade em relação ao trabalho que realizaram. O objetivo final é claro: trazer um dos maiores clássicos da literatura latino-americana à tela com a mais alta qualidade possível. “Esperamos que isso seja uma forma de guiar as pessoas ao livro, para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de lê-lo”, concluiu Enríquez, com um sorriso.
Ao olharmos para este projeto colaborativo, cada peça do quebra-cabeça da produção, desde cenários até vestuário e acessórios, reafirma a habilidade do cinema em criar mundos ricos e imersivos que respiram a história e a cultura de suas origens. O público certamente espera ansiosamente a oportunidade de visitar o magnífico, mas trágico, mundo de Macondo, revivendo a magia e a dor que habita os versos de García Márquez.