Em um desfecho que está chamando a atenção da sociedade francesa e internacional, ao menos 17 homens condenados no júri de estupro em massa de Pelicot apresentaram apelações contra suas condenações, conforme divulgado pelo escritório do promotor na cidade de Avignon. Essa história de horror, que expõe uma faceta obscura da misoginia, culminou em um julgamento que não apenas chocou a França, mas também provocou um debate intenso sobre a cultura de violência sexual que persiste no país.
O julgamento, que resultou em penas para todos os 51 acusados ao longo de um processo judicial que se estendeu por meses, resultou em um diagnóstico alarmante da situação atual. Ao todo, todos os réus foram considerados culpados de estupro ou agressão sexual ao final do julgamento, que ocorreu no início deste mês. Em uma série de atos grotescos e criminosos, Pelicot orquestrou, por quase uma década, a visita de mais de 50 homens à sua casa na vila de Mazan, no sul da França, onde sua então esposa, Gisèle Pelicot, foi repetidamente drogada e violada, em uma trama que expõe a crueldade e a complexidade das dinâmicas de poder no contexto de violência de gênero.
O desfecho do julgamento foi um marco significativo na luta contra a violência sexual na França e levantou questões profundas sobre a normalização das agressões e a perpetuação da ideia de que o consentimento pode ser implícito em relações de poder desiguais. No último dia para apresentação de recursos, que ocorreu recentemente, os defensores de 17 dos réus se manifestaram, destacando a crença de seus clientes de que o consentimento conjugal valeria em suas respectivas defesas, uma alegação que ecoou forte críticas por tratar a questão como uma questão privada em vez de uma não aceitação da violação dos direitos humanos.
A afronta ao status quo não se limitou à legalidade, uma vez que a notícia da sentença também trouxe à tona o debate sobre as sentenças aplicadas. Pelicot, que foi condenado a 20 anos de prisão – a pena máxima permitida na França por estupro agravado – não recorrerá da decisão, segundo sua advogada Béatrice Zavarro, que declarou aos meios de comunicação franceses que seu cliente optou por não apelar, temendo que isso imponha a Gisèle a um “sofrimento adicional”. Como ela destacou, Pelicot acredita que é hora de “virar a página judicial” e “considerar este capítulo encerrado”.
O julgamento expôs uma dinâmica perturbadora: dos 51 homens acusados, quatorze se declararam culpados de estupro, enquanto outros negaram as acusações, insistindo que não havia má conduta, sugerindo, de maneira preocupante, que acreditavam que o consentimento do marido era suficiente. Um dos réus foi condenado por tentativa de estupro e estupro agravado de sua própria esposa, utilizando métodos semelhantes aos de Pelicot, trazendo à luz a normalização da violência sexual nas relações afetivas e familiares.
As penas variaram de três a quinze anos, mas muitos réus receberam sentenças mais leves do que os promotores esperavam. Isso despertou um debate vigoroso na sociedade civil e nas esferas política e judicial francesa sobre a adequação das punições para crimes de tal gravidade. Algumas condenações resultaram em penas suspensas, permitindo que alguns réus deixassem o tribunal sem cumprirem efetivamente a pena. Essa situação levantou questões sobre a eficácia das políticas de combate à violência de gênero na França.
Por outro lado, Gisèle Pelicot foi amplamente elogiada por sua coragem durante todo o processo judicial. Ao optar por renunciar à sua anonimidade, ela buscou não apenas tornar público o julgamento, mas também inspirar outras mulheres a se manifestarem. Em declarações emocionantes, ela ressaltou a necessidade de suporte e solidariedade entre as sobreviventes de agressões sexuais. “Estou pensando em todas as vítimas não reconhecidas de histórias que frequentemente se desenrolam nas sombras. Quero que saibam que compartilhamos a mesma luta”, disse ela após o veredicto.
O caso Pelicot é mais do que um julgamento; é um reflexo das batalhas em andamento contra uma cultura enraizada de misoginia e violência sexual. Em uma declaração feita no tribunal, Gisèle enfatizou: “Estupro é estupro. Quando você entra em um quarto e vê um corpo imóvel, em que ponto você decide não reagir… por que não deixou imediatamente para denunciar à polícia?” Essas perguntas ecoam entre as vozes dos muitos que ainda se sentem invisíveis e sem apoio em sua luta por justiça.
Essa situação alarmante demanda que a sociedade francesa e outras ao redor do mundo reavaliem não apenas suas leis, mas as normas culturais que, por muito tempo, tornaram essa forma de violência banal. O que está em jogo aqui não é apenas o futuro de 17 homens, mas a segurança e o valor das vidas muitas vezes negligenciadas das mulheres que têm suas histórias enterradas sob a pressão de silêncio e vergonha. A jornada de Gisèle e as consequências do veredicto são um chamado à ação, uma oportunidade para revisitar e redefinir a luta contra a violência de gênero em todas as suas formas.
Reportagens adicionais de Saskya Vandoorne e Serene Nourrisson foram incluídas neste artigo.