Kyiv
CNN —
Em um cenário marcado pela devastação e incertezas, a vida cultural na Ucrânia resiste, mostrando resiliência e determinação. Olha Mesheryakova, uma empreendedora que vive em Kyiv, exemplifica essa robustez ao afirmar que, apesar das dificuldades, acredita que em 2025 poderá prestigiar diversas apresentações teatrais na capital. A simples perspectiva de prestigiar performances teatrais em meio a tanta turbulência traz para ela um sopro de esperança. “Isso cria uma certa expectativa, fornece uma estrutura e um grande suporte em um momento em que o mundo ao meu redor ficou louco. E sei exatamente o que farei no dia 23 de dezembro, por exemplo, porque comprei ingressos no verão. Honestamente, isso me dá esperança e fé no futuro. É uma forma de mágica”, relata.
Não é apenas Olha que se entrega ao encanto do teatro. Para garantir ingressos para uma apresentação popular, ela e milhares de outros ucranianos precisam se antecipar meses. No centro histórico de Kyiv, em uma rua escurecida, o movimento de carros desacelera enquanto centenas de pessoas se dirigem ao pequeno e histórico Teatro Nacional Acadêmico Dramatúrgico Ivan Franko, localizado a poucos metros da residência presidencial. Desde que reabriu suas portas, seis meses após o início da invasão em larga escala da Rússia em 2022, o teatro tem registrado lotação praticamente todos os dias.
O teatro e seus enredos têm se transformado, assim como seus atores e público. Yevhen Nyshchuk, o diretor, se alistou nas forças armadas em 2022, assim como muitos de seus colegas de elenco. Os atores que protagonizam “Três Camaradas”, uma adaptação de um romance pós-Primeira Guerra Mundial do escritor alemão Erich Maria Remarque, serviram na linha de frente, voltando ao palco apenas um ano depois. “A perspectiva sobre a obra mudou completamente. A realidade da guerra, que já afetou a todos, nos mudou. Senti que o público mudou sua percepção do teatro, ficou mais ávido por essa troca de energia”, explica Nyshchuk.
O diretor ainda sente esse apreço alterado pela dramaturgia, pois ele e seus colegas continuam a servir nas Forças Armadas. Para realizar as apresentações, obtiveram permissão para se ausentar do front temporariamente. Desde o início do conflito, o Teatro Ivan Franko encenou mais de 1.500 apresentações, atraindo mais de meio milhão de espectadores e estreando 17 peças, incluindo “A Bruxa de Konotop”, uma produção que explora temas de amor e poder, que teve ingressos esgotados em minutos e gerou uma lista de espera considerável.
“Quantidades imensas de espectadores estão desejosos de ir ao teatro. Não consigo encontrar uma explicação para isso”, afirma o diretor Ivan Uryvskyi, ressaltando que os espetáculos esgotam facilmente. A realidade, no entanto, é que muitos não buscam fugir da triste realidade da guerra; por vezes, o contrário é verdadeiro. “Alguém precisa mergulhar no presente e entender a si mesmo. Não precisa ir a uma comédia e se distrair. Ele busca um sério diálogo, talvez precise chorar no teatro”, pondera Uryvskyi.
Mesmo aqueles que desejam um escape da guerra muitas vezes não conseguem, visto que as apresentações são frequentemente interrompidas por sirenes de ataque aéreo. Quando isso ocorre, o público é obrigado a deixar o prédio do teatro e buscar abrigo na estação de metrô mais próxima. Se o perigo passar em até uma hora, a performance é retomada; caso contrário, a apresentação é remarcada. Tanto as novas peças quanto aquelas que fazem parte do repertório há anos recebem aplausos calorosos do público que, como observa Nyshchuk, “oferece parte do seu aplauso aos artistas pela performance e, olhando uns para os outros, outorgam outra parte a si mesmos, pelo simples fato de que, por exemplo, conseguiram sobreviver a um ataque aéreo envolvendo mais de 120 mísseis e mais de 100 drones, e mesmo assim vieram assistir a uma apresentação que não foi cancelada”.
A vida literária em ascensão
À parte das luzes dos palcos, a cena literária na Ucrânia também vive um momento vibrante. O número de livrarias aumentou de 200, antes da guerra, para quase 500. Entre elas, destaca-se a Sens, a maior loja de livros do país, que abriu suas portas em plena guerra, em uma das principais ruas de Kyiv. Com mais de 57 mil títulos disponíveis, a loja se vê abarrotada a qualquer momento do dia, tendo registrado uma impressionante marca de mais de meio milhão de clientes somente neste ano. Segundo Oleksiy Erinchak, o fundador, o lançamento de um projeto tão grandioso em tempos de conflito parece lógico. “Um livro é a forma mais conveniente de passar o tempo durante a guerra, quando nada é previsível. Muitas pessoas mudaram para o idioma ucraniano (do russo), tentando entender o que significa ser ucraniano. E os livros facilitam isso”, diz ele.
É relevante destacar que, segundo o Instituto do Livro da Ucrânia, a proporção de adultos ucranianos que lêem diariamente aumentou para 16% durante a guerra. Essa mudança de hábito é vista por Erinchak como uma oportunidade não apenas para a literatura, mas para a própria cultura ucraniana em sua totalidade. Ele acredita que a resposta da sociedade em tempos de adversidade deve ser capitalizada para construir uma estrutura cultural ainda mais sólida para o futuro. “A cultura local sempre floresce durante os períodos de guerra… Se as pessoas estão trazendo dinheiro para as livrarias ucranianas, isso significa que devemos reinvestir esse dinheiro em livros e na cultura ucraniana, criando um escudo semântico contra possíveis desinformações”, afirma.
Cantores em abrigos sob os bombardeios
Os ventos da cultura se espalham para além dos teatros e livrarias, alcançando os abrigos. Durante um dos shows de aniversário do Okean Elzy, uma das bandas mais queridas da Ucrânia, um alerta de bombardeio soou. Parte do público se refugiou no metrô, acompanhada pela banda. No meio da escada do metrô, o show continuou, com apenas guitarras e vozes ressoando, formando um coro poderoso. “Os concertos do Okean Elzy são um reflexo de nossa história. Estamos juntos há 30 anos, seja em grandes shows ou em abrigos. Não importa o local, mas sim a união”, postou a banda em sua rede social.
Desde a invasão em larga escala, Svyatoslav Vakarchuk, o vocalista da banda, já realizou mais de 300 concertos para os militares, fazendo shows até em posições próximas à linha de frente. Em alguns vídeos postados, o som de tiros de artilharia pode ser ouvido enquanto Vakarchuk canta. A banda já doou quase 280 milhões de UAH (cerca de 6,7 milhões de dólares) para as Forças de Defesa da Ucrânia.
Esse espírito solidário também se reflete no Teatro Ivan Franko, que organiza continuamente apresentações beneficentes, tendo arrecadado mais de 1,2 milhões de dólares para as Forças Armadas. Também disponibiliza seu palco para grupos teatrais que perderam seus teatros devido à ocupação russa ou não podem realizar suas performances em função da insegurança.
De modo geral, a vibrante vida cultural nas cidades em retaguarda contrasta fortemente com a realidade nas áreas de frente, onde a Rússia continua a avançar e tomar território. Yegor Firsov, um sargento que vem lutando contra os russos desde 2022, é a favor de uma vida cultural ativa, mesmo sabendo que muitos de seus irmãos de armas enfrentam um verdadeiro inferno. “Quando se trata de mulheres e crianças, eu e meus colegas sempre apoiamos isso”, diz Firsov. “Porque as pessoas precisam se distrair do estresse e, nesses tempos difíceis, querem vivenciar algo autêntico, e livrarias e teatros falam sobre a vida concreta”. E quando os raros momentos permitem que ele venha de volta a Kyiv, também vai a concertos.
“A cultura faz parte de nossas vidas. Trata-se tanto da guerra quanto do lazer, pois até nós, militares, precisamos de cura mental e de distrações, para sermos resilientes”, conclui Firsov.