Kano, Nigéria — Nos últimos meses, as autoridades da cidade de Kano, a maior do norte da Nigéria, implementaram uma ação controversa que visa a retirada de crianças em situação de rua vistas como uma “ameaça à segurança”. Com o agravamento da crise econômica que atinge o país, mais de 5.000 crianças estão vivendo nas ruas, e a Hisbah, a polícia regional encarregada de aplicar a lei islâmica, iniciou uma série de operações noturnas para resgatar esses jovens. Desde o começo do ano, agentes da Hisbah têm realizado operações em parques de motoristas, mercados e esquinas da cidade, resgatando crianças enquanto dormem e levando-as para campings destinados à sua reabilitação.
O diretor-geral da Hisbah, Abba Sufi, informou à AFP que, até o momento, foram resgatados cerca de 300 meninos das ruas. “A permanência dessas crianças nas ruas representa uma ameaça social e de segurança significativa, pois eles se tornam potenciais recrutas para o crime”, disse Sufi. Ele enfatizou que a situação dessas crianças é uma “bomba-relógio” que requer uma intervenção urgente.
A preocupação em relação à crescente população de crianças em situação de rua aumentou após o governador do estado de Kano, Abba Kabir Yusuf, estabelecer, em novembro, um comitê para abordar o problema. A maioria dessas crianças, predominantemente meninos, tem passado as noites ao relento e não possui acesso à educação ou ao amparo parental. Com a taxa de divórcios mais alta da Nigéria, de acordo com dados oficiais, a cidade enfrenta um aumento no número de crianças oriundas de lares desestruturados.
As crianças abandonadas nas ruas de Kano frequentemente ficam à mercê da situação, vagando pela cidade, mendigando, vendendo produtos em semáforos e até mesmo revirando lixo em busca de metais para vender. A crise econômica que afeta a Nigéria está em um de seus piores momentos nas últimas décadas, com uma inflação que atingiu 34,6% em novembro, o que tornou a alimentação uma necessidade cada vez mais difícil de se alcançar para a população.
A Nigéria possui cerca de 18,5 milhões de crianças fora da escola, com o estado de Kano respondendo por 1,9 milhão, representando a maior taxa do país, como revelado em uma pesquisa realizada pela UNICEF em 2022. Os números mostram que 39% do total de crianças que vivem no estado estão fora do sistema educacional, conforme indica o levantamento multidimensional de pobreza da Nigéria de 2022.
Segundo as autoridades, muitos dos jovens que vivem em Kano provêm de estados vizinhos. “Alguns deles são de Kano, enquanto outros vêm de outros estados”, explicou o comandante da Hisbah, Aminu Daurawa. A primeira etapa do processo consiste em fazer um levantamento e identificar a origem de cada criança. Algumas foram encaminhadas de vilas para aprender a ler o Alcorão em escolas religiosas islâmicas informais, conhecidas como almajiri. Moradores relataram que muitos alunos dessas escolas recorrem à mendicância por alimento e esmolas entre as aulas.
As tentativas das autoridades e de grupos locais de intervir e apoiar o sistema almajiri enfrentaram resistência por parte de clérigos tradicionais. A polícia Hisbah pretende oferecer suporte “psicossocial” e aconselhamento às crianças antes de matriculá-las na escola, para aquelas que demonstram interesse. Para os demais, a alternativa será o fornecimento de um capital inicial para que possam iniciar um comércio de sua escolha. Daurawa acrescentou que as crianças de outros estados serão repatriadas após sua reabilitação.
Historicamente, as tentativas de eliminar a presença de crianças em situação de rua na cidade não tiveram sucesso. Entre 2017 e 2018, a Hisbah resgatou cerca de 26.000 crianças e as reintegrou com suas famílias em Kano e em outras localidades, mas elas retornaram às ruas após algumas semanas. Durante a pandemia de COVID-19, as autoridades em Kano fecharam as escolas almajiri e transportaram os alunos de volta para seus estados, mas muitos deles voltaram assim que as aulas foram retomadas.
“Queremos evitar uma repetição da experiência passada, por isso mudamos a abordagem, criando acampamentos para as crianças e reabilitando-as antes de reintegrá-las à sociedade”, finalizou Sufi. O futuro dessas crianças continuará a ser uma questão de grande relevância não só para a sociedade de Kano, mas também para o contexto mais amplo da crise social e econômica que a Nigéria enfrenta, destacando a importância de um olhar mais atento para a infância vulnerável e abandonada.