No início de janeiro, Enitza Templeton, uma criadora de conteúdo de 41 anos e assistente de enfermagem, se viu em uma situação inesperada ao esperar em uma fila em um centro de distribuição de alimentos perto de Denver. O momento trouxe à tona uma reflexão profunda sobre seu passado e as escolhas que a levaram àquela realidade. A trajetória de Templeton começou de forma idílica em 2009, quando se casou com um homem que compartilhava sua fé cristã evangélica e sua preferência por papéis de gênero tradicionais dentro do casamento. Ele era o provedor econômico, enquanto ela assumiu a responsabilidade pela criação dos quatro filhos e todas as atividades domésticas, uma dinâmica que lhe parecia ser exatamente o que desejava. Porém, essa aparente harmonia foi gradualmente substituída por uma sensação de invisibilidade e opressão que culminou em seu pedido de divórcio em 2019. Para Templeton, ser apenas a esposa que seu marido idealizava se tornou insuportável, levando-a a buscar novos horizontes e a uma certeza: a vida de tradwife não era a realização de seus sonhos. Com uma década de lacunas em seu currículo e sem segurança financeira, o processo de reconstrução de sua vida não tem sido tarefa fácil.
A ascensão da cultura das tradwives desconstruída por ex-adeptas
O desabafo de Templeton ocorreu em um vídeo viral compartilhado no TikTok, onde expressava sua indignação em relação ao que denomina de “vida de tradwife” e às expectativas alheias. A pertinência e relevância do termo “tradwife”, um encurtamento de “traditional wife” (esposa tradicional), começaram a ganhar destaque nas redes sociais desde a pandemia de Covid-19, especialmente em plataformas como TikTok e Instagram. Essa expressão pode ser equipada a um estereótipo que retrata mulheres que se dedicam ao papel de esposas tradicionais, muitas vezes em ambientes conservadores e religiosamente influenciados, como o mormonismo. A narrativa em torno das tradwives se tornou um tema de debates acalorados, especialmente na recente atenção direcionada a figuras como Hannah Neeleman, também conhecida como Ballerina Farm, cuja vida familiar em Utah foi abordada em um artigo do The Times of London. A publicação revelou nuances e tensões em sua vida de esposa e mãe com oito filhos, o que provocou discussões entre os defensores e críticos desse estilo de vida. A resposta à cobertura midiática evidenciou não apenas a defesa do ideal de esposa tradicional, mas também as críticas contundentes sobre os custos emocionais e financeiros desse papel.
Riscos financeiros e o novo debate sobre a segurança na vida doméstica
Mulheres como Enitza Templeton e outras ex-adeptas, como Jennie Gage e Joanna Dahlseid, emergiram como vozes críticas, oferecendo advertências sobre as complexidades e os riscos financeiros envolvidos na adoção de tal estilo de vida. Dahlseid, com seu compromisso de educar suas seguidoras no TikTok sobre a importância da segurança financeira no casamento, enfatiza os perigos do ideal romântico que faz crer que a dependência total do parceiro financeiro é amor. Para ela, as mulheres devem ser proativas em garantir suas próprias proteções financeiras. A recomendação de discutir acordos pré-nupciais robustos foi um ponto-chave de seu discurso, refletindo uma necessidade crescente de empoderamento econômico entre as mulheres. Essa reavaliação também teve influência em outros aspectos sociais, à medida que a narrativa se desloca para a autonomia e a escolha, abordando o que significa ser uma mulher no século XXI.
Entretanto, a crítica à figura da tradwife não se limita a números e acordos; refere-se também à promoção de uma narrativa que idealiza papéis tradicionais sem considerar as realidades muitas vezes cruéis que podem surgir. Lisa Pontius, uma mãe que decide educar seus filhos em casa e se expressa politicamente, discute abertamente as desilusões que surgem a partir dessa glorificação, que muitas vezes ignora a complexidade da experiência feminina no presente. Ao mesmo tempo, Pontius critica a tendência de rotular mulheres que abraçam esses papéis mais tradicionais sem perceber que isso pode ser um veiculo para autoempoderamento. A nuance na discussão permite escolher a vida que se deseja, ao invés de se ver subordinada a uma narrativa que pode levar à insatisfação e ao arrependimento.
O fenômeno das tradwives, portanto, serve como um espelho para as tensões contemporâneas sobre gênero, economia e escolha, mostrando que, apesar das premissas de segurança e conforto, o preço emocional e financeiro pode ser alto demais. Para muitas mulheres, o despertar para as realidades de sua autonomia se transforma em uma batalha interna, refletindo a luta por uma vida que respeite suas ambições, aspirações e, acima de tudo, suas identidades.