A proliferação de temas de saúde reprodutiva nos principais filmes de Hollywood em 2023 é, no mínimo, alarmante. Após a revogação do histórico caso Roe v. Wade, os filmes que alcançaram as maiores bilheteiras parecem ter silenciado um assunto de extrema relevância: o aborto. Embora as preocupações sobre os direitos reprodutivos estejam em alta, especialmente entre as mulheres mais jovens, a indústria cinematográfica falhou em abordar essa temática de maneira adequada. De acordo com um novo relatório da Iniciativa de Inclusão Annenberg da USC, somente um filme entre os 100 mais rentáveis de 2023 apresentou uma representação do aborto e, ironicamente, foi por meio de uma linha proferida por um demônio no filme ‘O Exorcista: Crente’. Neste contexto, é crucial analisar as implicações dessa omissão nas narrativas contemporâneas.
Representações escassas e a voz do aborto no cinema
No filme mencionado, ‘O Exorcista: Crente’, um demônio sugere de forma insensível a prática do aborto ao afirmar: “Escavada, ela foi, como uma abóbora podre, seu bebê”. Essa citação revela não apenas o modo cruel como o tema é abordado, mas também a ausência de um diálogo significativo e empático em relação à saúde reprodutiva. O estudo de Stacy L. Smith revela que, apesar de 40% das mulheres com menos de 30 anos considerarem o aborto como a questão mais importante nas eleições deste ano, Hollywood gastou apenas 3 minutos e 12 segundos discutindo esses temas nas quase 200 horas de conteúdo cinematográfico do ano passado. Nesse cenário, a indústria parece não só ignorar a importância do assunto, mas também perder uma oportunidade valiosa de educar o público sobre a complexidade do aborto e das questões reprodutivas.
Uma análise da falta de diversidade nas narrativas cinematográficas
Outro ponto importante levantado pelo estudo é a falta de diversidade de gênero entre os criadores de conteúdo, algo que indubitavelmente influencia as narrativas que chegam às telas. Em um levantamento das 1.700 produções mais populares dos últimos 17 anos, 93,5% dos diretores, 87% dos roteiristas e 77,9% dos produtores eram homens. Essa predominância masculina resulta em histórias que frequentemente refletem apenas uma perspectiva, o que limita a profundidade e a diversidade nas representações dos desafios enfrentados pelas mulheres. A pesquisa também apontou que apenas 42% dos principais filmes abordaram questões de saúde reprodutiva, e mesmo assim, a maioria desses filmes se concentrou em temas relacionados à gravidez. Mais desconcertante ainda é o fato de que apenas 53 personagens experimentaram a gravidez, dos quais apenas 51 apareceram na tela, representando apenas 3,3% de todas as mulheres adolescentes ou adultas retratadas.
Em termos de outras questões relevantes, o tema da infertilidade foi abordado em apenas duas produções no topo da lista: ‘Napoleão’, que narra a incapacidade de Josephine de conceber um herdeiro masculino, e ‘Seu Único Filho’, que retrata Sarah e sua dificuldade para gerar um filho. Curiosamente, ambos os filmes retratam a infertilidade em contextos históricos, deixando de apresentar as realidades modernas que muitas mulheres enfrentam, como a fertilização in vitro ou a gestação de substituição. A ausência de representações atualizadas contribui para a perpetuação de estigmas e mal-entendidos em torno de questões que afetam muitas famílias contemporâneas.
O papel das mulheres na mudança narrativa do cinema
Por outro lado, a pesquisa destaca duas produções significativas dirigidas por mulheres que conseguiram trazer à tona questões de saúde feminina. Em ‘Barbie’, a personagem de Margot Robbie visita uma ginecologista, uma cena que se destaca pela sua relevância e sutileza em um filme que frequentemente é visto como leve e divertido. Em ‘Está Aí Deus, Sou Eu, Margareth?’, pré-adolescentes visualizam um livro de anatomia, sinalizando uma tentativa de normalizar discussões sobre saúde reprodutiva desde cedo. Essas representações são importantes, não apenas por sua frequência, mas pelo potencial que têm de mudar a conversa em torno da saúde das mulheres, ressaltando o papel vital que tem sido desempenhado pelas cineastas em Hollywood.
Reflexões finais sobre a indústria cinematográfica e suas responsabilidades
Como sociedade, é vital que os criadores de conteúdo, produtores e estúdios considerem as repercussões de suas narrativas na formação da opinião pública sobre temas relevantes e controversos. Ignorar a saúde reprodutiva e os direitos das mulheres não é apenas um desserviço à representação justa na mídia, mas também à formação de uma geração mais informada e empática. O cinema desempenha um papel fundamental na definição do que consideramos normal e aceitável, e a falta de diversificação nessas histórias só perpetua estereótipos prejudiciais. Em um momento crítico para os direitos reprodutivos, a indústria de entretenimento deve refletir, priorizar e, acima de tudo, se comprometer a abordar temas vitais de forma autêntica, multidimensional e respeitosa.