Em uma noite qualquer em Xangai, entre goles de uma cerveja turva, Liang Xiao se viu imerso em uma palestra de sociologia que deixou todos os presentes fascinados. O local, um pub com iluminação suave, estava lotado com mais de 40 jovens urbanitas que se reuniram para assistir a um discurso proferido por um estudante de doutorado chinês em uma renomada universidade americana. A temática da palestra, embora não focasse especificamente na China, causou um impacto profundo nos participantes, especialmente pela forma franca como o acadêmico tratou do funcionamento do poder estatal, incluindo o uso de força bruta – um tópico raramente discutido abertamente no ambiente político sufocante que caracteriza o país atualmente.
As palavras de Liang ecoam a inquietação de muitos na China contemporânea, onde a liberdade de expressão tem se restringido cada vez mais com o aumento da censura. Conforme o estudante de 32 anos destacou: “Fiquei completamente atônito quando ele mencionou a violência de maneira tão direta. Na China, simplesmente não se pode falar sobre a natureza de um país de forma tão aberta.” No entanto, essa busca por espaços de diálogo livre não é uma exclusividade de Xangai. Nos últimos meses, “pubs acadêmicos” têm se proliferado nas principais cidades chinesas, como Pequim e Guangzhou, oferecendo uma raro ambiente de conversas intelectuais que fluem livres em um país onde a esfera pública está encolhendo drasticamente.
A proposta desses encontros, que mesclam bebida com discussões acadêmicas, abrange uma ampla gama de tópicos das ciências sociais e humanas. Temas considerados sensíveis e frequentemente censurados online, como feminismo, são abordados ao lado de assuntos mais leves, como a ansiedade social e a representação de gatos em pinturas da China antiga. Esses eventos têm ganhado popularidade entre a jovem elite urbana que, saindo de longos períodos de lockdown, busca se reconectar em um ambiente presencial que estimule debates abertos e sinceros.
Esse fenômeno não é inédito globalmente. Iniciativas semelhantes têm sido comuns no Ocidente há quase três décadas, como o “Cafe Scientifique”, um fórum relaxado de debates científicos que começou no Reino Unido em 1998, ou o “Pint of Science”, um festival científico que viralizou desde sua criação em 2013. Agora, os encontros de “happy hour” focados em expor ideias estão se enraizando na cultura urbana chinesa, um sinal evidente de que essa geração está em busca de espaços de liberdade para expressar suas opiniões e discutir questões relevantes.
As universidades ocidentais, que em geral recebem o público de braços abertos, contrastam com a realidade das instituições chinesas, onde a academia permanece restrita ao acesso de estudantes, professores e pessoal autorizado. Segundo Lei Ya-wen, professor de sociologia em uma respeitada universidade americana, essa ascensão dos pubs acadêmicos evidencia que os jovens da China ainda estão em busca de lugares para compartilhar ideias e opiniões, mesmo em um cenário em que a esfera pública encolhe.
um espaço sem autoridades: o despertar da voz jovem
Um exemplo do impacto desses encontros pode ser visto pela experiência de Cinnamon Wu, um recente graduado em artes que participou de uma discussão sobre a evolução da literatura sino-americana em um bar em Pequim, a poucos minutos das principais universidades do país. O que deveria ser uma troca cultural frutífera tomou um rumo inesperado quando alguns participantes criticaram a influência da correção política na cultura popular americana. Para Wu, essa expressão de opiniões tidas como conservadoras em um evento acadêmico foi uma verdadeira surpresa.
Jerry Zhang, organizador da sessão, comentou que o choque de visões diferentes é parte do valor dessas palestras. “Se nossas discussões giram em torno de um tema, é normal que haja uma diversidade de opiniões. Isso faz parte da experiência acadêmica em um ambiente que é, por natureza, informal.” As discussões positivas e abertas desenroladas nos pubs contrastam fortemente com a sala de aula e as universidades, onde a ideia de questionar um professor ainda é vista como perigosa, e qualquer desvio da linha convencional pode levar a sanções. “É muito difícil para nós expressar qualquer opinião política em sala de aula – a menos que sejam extremamente mainstream e inquestionáveis”, relembrou Wu.
Diante desse contexto de censura e controle social, é gratificante ver que esses encontros têm proporcionado aos jovens um espaço para interagir e debater. Liang, que avaliou a palestra sobre construção estatal como bastante ousada, expressou sua preocupação em relação ao futuro desses eventos: “Em um país com uma governança tão rígida, é comum que as pessoas se autocensurem, examinando suas palavras – e as dos outros – sob a perspectiva do governo.” Embora a ideia de se encontrar em um pub e discutir temas sensíveis possa parecer lúdica, a realidade é que, na China, isso demanda coragem e um certo nível de autocontrole.
preocupações com o futuro: o que vem a seguir?
Com o crescimento das palestras acadêmicas em pubs, surgem também preocupações sobre o futuro desse espaço emergente para intelectuais em um país onde a censura se intensifica. Abalos culturais recentes têm deixado a comunidade criativa em alerta. O setor de comédia stand-up, por exemplo, sofreu uma interrupção significativa após um show ter sido encerrado devido a uma piada considerada um “severo insulto” às forças armadas. Em meio a um clima tão volátil, vozes nacionalistas ganharam força nas mídias sociais, tornando-se uma força “não oficial” para fiscalizar a fala pública, vigiando e atacando qualquer dissenso.
No entanto, a resistência manifestada por esses jovens a partir de encontros informais indica que, mesmo em meio ao cerco das autoridades, há uma necessidade intrínseca de diálogo e intelectualidade. As palestras nos pubs representam uma válvula de escape para muitas mentes inquietas, alimentando discussões que são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade mais participativa e crítica. Mesmo assim, a questão que paira no ar é: será que esses encontros conseguirão sobreviver à pressão da censura? Com a evolução contínua do cenário, o destino desses “pubs acadêmicos” permanece incerto, dependendo de como o governo reaja a essa nova onda de liberdade de expressão.