A cada ano, quando o outono se aproxima, inicia-se uma rica tradição no lar de muitos norte-americanos: a disputa entre duas iguarias que se tornaram icônicas na celebração do Ação de Graças. Esta tradição permeia o espírito da festividade e se evidencia na escolha entre duas tortas que, apesar de suas semelhanças, carregam significados culturais profundos e distintos. De um lado, temos a torta de abóbora, amplamente adotada nas regiões do Norte, enquanto, do outro lado, a torta de batata doce, que possui um lugar especial, especialmente em lares afro-americanos no Sul. O embate entre essas duas opções não se resume a uma simples questão de preferências alimentares, mas reflete uma divisão cultural que remonta a séculos de história americana.
Debra Freeman, uma historiadora da alimentação, faz questão de destacar sua inclinação pela torta de batata doce, tendo crescido em uma família da região Sul dos EUA, onde essa iguaria era presença garantida nas mesas de Ação de Graças. “Estando no Sul, sinto que sou legalmente obrigada a preferir a torta de batata doce”, comentou Freeman, referindo-se às tradições que envolvem a receita, que foi passada de geração em geração em sua família. Para ela, o sabor da torta de batata doce evoca memórias nostálgicas que se conectam à figura de sua avó, que por sua vez aprendeu a fazer a torta com a avó dela. Em contraste, Freeman admite que a torta de abóbora só foi introduzida em sua vida na adolescência, o que fortalece sua conexão emocional com a torta de batata doce.
Nos dias de hoje, é quase impossível escapar da “mania da abóbora” que se espalha com a chegada do outono, permeando desde bayas de café até velas aromáticas. Essa categoria de produtos evocam um aroma que se tornou parte integrante da cultura ocidental contemporânea. Entretanto, em muitos lares, particularmente entre as comunidades afro-americanas, a torta de batata doce ainda é a preferida, sendo considerada a verdadeira estrela das festividades de Ação de Graças. Embora as receitas de torta de batata doce e de abóbora compartilhem semelhanças, como o recheio doce e cremoso, temperado à moda, as variações são notáveis: a primeira tende a ser mais doce, enquanto a última é mais picante.
A Chegada do Dia de Ação de Graças e as Raízes Históricas das Tortas
A divisão entre a torta de batata doce e a torta de abóbora pode ser simplificada como uma questão de preferência racial, porém a realidade é muito mais complexa. O Dia de Ação de Graças, como o conhecemos, foi instituído pelo presidente Abraham Lincoln durante a Guerra Civil como uma tentativa de unificar o país. A celebração só foi oficializada como feriado nacional em 1941, já próximo do nascimento da mãe de Freeman, que ressalta a resistência do Sul em aprovar a festividade, percebida por muitos como uma imposição dos valores do Norte.
A torta de abóbora emergiu como um símbolo dos ideais do Norte, impulsionada principalmente por Sarah Josepha Hale, uma ativista e abolitionista que lutou pela implementação da tradição do Dia de Ação de Graças e registrou sua importância em seu livro de 1827, “Northwood: A Tale of New England”. No relato de Hale, ela descreve uma cena apetitosa que inclui um peru assado e duas tortas, uma delas de abóbora, ambas fundamentais para um “verdadeiro Dia de Ação de Graças”.
O trabalho de Hale ajudou a consolidar a torta de abóbora como uma iguaria indispensável nas celebrações de Ação de Graças, mesmo antes de passar a ser oficialmente celebrada. A torta de abóbora, portanto, tornou-se um emblema das tradições do Norte e, até hoje, é a escolha favorita de muitos americanos. Por outro lado, a popularidade da torta de batata doce dentro das comunidades afro-americanas reflete uma relação mais íntima da cultura, frequentemente ligada à herança africana. Historicamente, muitos dos ingredientes utilizados nas receitas de torta são reminiscências da culinária daquela região e, assim, surgem novas formas de compartilhamento cultural através da gastronomia.
Sarah O’Brien, fundadora de uma rede de padarias em Atlanta, exemplifica essa diversidade de tradições. Embora viva no Sul há mais de uma década, a padaria que ela gerencia foca na torta de abóbora, que se tornou o seu mais popular produto de Ação de Graças. O método de O’Brien é criar uma torta que ressoe com sua própria infância, crescida em Ohio, sem considerar a questão da competição entre as duas opções de tortas.
As Connexões entre as Tortas e a Identidade Cultural
Falar sobre as tortas de abóbora e batata doce nos leva a refletir sobre a história das tradições alimentares nos Estados Unidos. Tanto as batatas-doces quanto as abóbora não são ingredientes nativos no contexto americano. As batatas-doces foram introduzidas na Europa por Cristóvão Colombo, e variedades delas já existiam nas Américas séculos antes da chegada dos europeus.
A prática de fazer tortas, que remonta a tempos da Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, e o uso de açúcar e especiarias que já faziam parte do comércio global, trazem à tona uma importante discussão sobre a amalgamação dos ingredientes e as tradições culinárias na formação da identidade cultural norte-americana.
A cultura alimentar no Sul dos EUA, em especial, e a maneira como as batatas-doces se tornaram um alimento comum nas mesas das famílias afro-americanas pode ser vista como um eco da cultura da culinária ocidental. Historicamente, a produção de batata doce foi predominante na região sul, especialmente na Carolina do Norte, que se destaca como o maior produtor.
Ao longo das gerações, a batata doce sempre ocupou um espaço significativo para os afro-americanos. O historiador culinário Michael Twitty, por exemplo, cultiva suas próprias batatas-doces, uma tradição familiar que se remonta pelo menos ao século XVIII. Em décadas passadas, George Washington Carver, famoso por seu trabalho com amendoim, divulgou uma receita de torta de batata doce que revitalizou sua popularidade entre os lares do Sul.
Mais recentemente, após eventos trágicos, como o assassinato de Michael Brown, a cozinheira Rose McGee trouxe 30 tortas de batata doce para a comunidade de Ferguson, Missouri, oferecendo um símbolo de união e solidariedade. McGee ressaltou a importância emocional que a torta tem para muitos, uma vez que evoca memórias de tempos e lugares felizes.
Atualmente, a divisão entre as tortas de abóbora e batata doce é clara e fundamentada em tradições familiares que se transmitem por gerações. Para alguns, a torta de abóbora é a verdadeira escolha por excelência; para outros, a torta de batata doce é insubstituível. Isso ressalta o quanto as iguarias de Ação de Graças vão além do simples ato de comer, sendo uma celebração da história, da cultura e das memórias que cada família carrega consigo.
Tanto a torta de batata doce quanto a torta de abóbora são longevas, ágeis protagonistas na mesa do Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Para os historiadores e os apreciadores das tradições culinárias, ambas representam um patrimônio genuinamente americano, uma fusão de ingredientes de diversas origens e uma celebração da cultura que se desenvolveu ao longo dos séculos. No final das contas, a verdadeira questão talvez não seja qual é a melhor torta, mas como cada um delas representa uma parte da história compartilhada de uma nação que se orgulha de sua diversidade.