A ex-membro do Exército Republicano Irlandês (IRA), Marian Price, iniciou um processo judicial contra a Disney devido à sua representação na aclamada série limitada da FX, Say Nothing. O advogado da acusadora, Peter Corrigan, revelou na quarta-feira que Price se viu “forçada a iniciar ações legais” na Irlanda contra a gigante do entretenimento, após a série adaptar o livro homônimo do escritor Patrick Radden Keefe, que é um colaborador do The New Yorker. O livro de Keefe argumenta que Price, que atualmente usa o nome de casada Marian McGlinchey, disparou o tiro que resultou na morte de Jean McConville, uma mãe de Belfast que se tornou uma das vítimas desaparecidas durante o conflito conhecido como “The Troubles” na Irlanda do Norte.

O trabalho de Keefe descreve a vida e o desaparecimento de McConville, que foi sequestrada e assassinada em 1972. O corpo dela foi encontrado em uma praia da Irlanda em 2003. A série, que já provocou polêmica e controvérsia, apresentou a personagem de Price, interpretada por Hazel Doupe, que teve sua narrativa alinhada com a de McConville, vivida por Judith Roddy, nos episódios finais.

“Dadas as circunstâncias, é difícil imaginar uma alegação mais grave do que a que foi imposta à nossa cliente”, disse Corrigan em um comunicado. Corrigan, que já defendeu um ex-voluntário do IRA em um caso relacionado ao assassinato de McConville, afirmou que a acusação não se baseia em qualquer evidência concreta. “Tal alegação, publicada em escala internacional, não é apenas injustificada, mas é odiosa, uma vez que procura causar um dano inestimável à nossa cliente em troca de maior sucesso de streaming. Nossa cliente se viu obrigada a iniciar ações legais para responsabilizar a Disney por suas ações”, acrescentou o advogado.

Na Irlanda do Norte, os demandantes devem primeiro emitir uma notificação ao possível réu se pretendem processá-lo, e o réu tem 21 dias para responder. A Disney e a FX não se pronunciaram sobre o caso até o momento.

Esse episódio traz à tona a complexa relação entre arte, verdade e a responsabilidade de soprar a poeira sobre o passado pesado de um país. O caso de Jean McConville é emblemático, não só pela brutalidade do crime, mas também pelo impacto emocional que teve sobre seus 10 filhos, que ficaram órfãos. A alegação de que ela colaborava com o exército britânico, uma acusação que acabou por não ter fundamento, levou a sua morte por republicanos, destacando mais uma vez as divisões profundas que ainda permeiam a sociedade norte-irlandesa.

Price, por outro lado, nunca comentou especificamente sobre o livro de Keefe, mas após o seu lançamento, ela declarou que “neguerei veementemente” as acusações que pesavam sobre sua pessoa. Em resposta à questão sobre a cena específica que a envolvia, o criador da série, Josh Zetumer, defendeu a abordagem do programa. Ele afirmou que a representação na televisão não é “especulativa” e se baseia em dados verificados e confirmados por múltiplas fontes.

O impacto da série se estendeu além do produto artístico em si, gerando discussões acaloradas na Irlanda do Norte sobre o legado do passado violento que ainda aflige muitos. Em um aspecto, a série se tornou uma plataforma para debates acalorados sobre a justiça, a dor e a representação da verdade, principalmente em um contexto tão delicado.

O programa Say Nothing, que estreou nos EUA e nos países de língua inglesa em 14 de novembro, recebeu aclamação da crítica, mas também corre o risco de ser considerado controverso. A série foi inclusa em diversas listas como uma das melhores do ano, até mesmo do The New York Times, The New Yorker e Vanity Fair. Entretanto, a abordagem sensível sobre um tema que ainda toca de forma muito pessoal aqueles que viveram os horrores dos “Troubles” resultou em um depoimento de um dos filhos de McConville, que expressou sua indignação, afirmando que a representação do assassinato de sua mãe na série é “horrenda”.

Geraldine Ferguson, mãe de um soldado britânico assassinado em um ataque do Real IRA, também se manifestou sobre a ação legal de Price, mencionando que “sabemos, por amarga experiência pessoal, o que ‘dano imensurável’ realmente se parece, pois foi o que nos aconteceu quando nosso filho foi assassinado”. Ela expresó que a história e seus desdobramentos exigem respeito pelas vivências que, como a dela, são dolorosas e marcantes.

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