O impacto dos filmes em nossas vidas vai muito além do entretenimento. Em um estudo inovador, pesquisadores da Universidade de Stanford estão explorando a possibilidade de que assistir a um filme pode efetivamente reprogramar nossas percepções e até mesmo empatia. Esse tema surgiu durante um encontro entre Scott Budnick, produtor de cinema, e o ex-presidente Barack Obama, quando discutiam a importância da narrativa cinematográfica. O que se iniciou como uma conversa casual entre eles, transformou-se em uma pesquisa acadêmica robusta que coloca em xeque nossa relação com a sétima arte e seu potencial de gerar mudanças significativas em nosso comportamento e opiniões.
A pesquisa começou a ganhar forma quando Budnick compartilhou a ideia de Obama com a psicóloga de Stanford, Jennifer Eberhardt, cuja pesquisa se concentra em preconceitos raciais. Eberhardt, motivada pela proposta, decidiu que era possível e necessário estudar a afirmação intrigante de que uma obra cinematográfica poderia, de fato, “mudar a matéria do cérebro de alguém”. O resultado dessa colaboração foi um estudo empírico que examinou como o filme “Just Mercy”, baseado na trajetória do advogado Bryan Stevenson, poderia influenciar as atitudes dos espectadores em relação ao sistema de justiça e aos indivíduos encarcerados.
Os primeiros resultados, publicados no Proceedings of the National Academy of Sciences, revelam dados fascinantes. O estudo incluiu 749 participantes que assistiram a entrevistas em vídeo de homens recentemente encarcerados, seguido pela avaliação de suas reações emocionais às histórias que asistiram. Os resultados mostraram que os sujeitos do estudo, após assistirem a “Just Mercy”, eram mais propensos a identificar corretamente as emoções dos homens que tinham passado pelo sistema prisional. Além disso, a pesquisa indicou que a empatia dos participantes em relação aos ex-presidiários aumentou substancialmente, enquanto o apoio ao uso da pena de morte diminuiu em 20%, um impacto maior do que o resultado típico de campanhas políticas, que costuma ser em torno de 10% de aumento no apoio a uma causa.
Esse fenômeno de “transporte narrativo”, como os pesquisadores nomearam, sugere que quando os indivíduos se imergem em uma história, suas atitudes podem mudar drasticamente. Em termos práticos, isso demonstra que filmes como “Just Mercy”, que aborda temas de injustiça e discriminação, pode ter um papel vital na formação da empatia e na promoção de discussões mais profundas sobre questões sociais. O estudo também considerou outras produções cinematográficas, como “Concussion” e “Moneyball”, que serviram como um controle para evitar a conclusão precipitada de que apenas assistir a um filme já provocaria mudança. Os resultados confirmaram que era a história específica de “Just Mercy” que estava moldando a percepção dos participantes, e não apenas a experiência cinematográfica em si.
Com o uso de máquinas de ressonância magnética, a equipe de Eberhardt e Jamil Zaki está explorando como o filme afeta regiões do cérebro associadas à empatia. Ao longo do estudo, 60 participantes assistiram ao filme, e enquanto a análise continua, a expectativa é que esses dados ajudem a corroborar a hipótese de Obama de que um filme não é apenas um meio de entretenimento, mas uma ferramenta poderosa de transformação social.
O impacto cultural de “Just Mercy” é ainda mais notável quando se considera o contexto social em que foi lançado. Após o assassinato de George Floyd em 2020, o filme foi disponibilizado gratuitamente em várias plataformas digitais, fazendo parte de uma programação dedicada à justiça racial. Tal ação destaca a relevância contínua de narrativas que confrontam injustiças e promovem conversas em torno da reforma do sistema judicial.
Através de seus estudos, Eberhardt não apenas deixa claras as implicações imediatas das representações de injustiça no cinema, mas também aponta para a possibilidade de expandir essa pesquisa para séries de televisão, onde a relação dos espectadores com os personagens se desenvolve ao longo do tempo, potencializando ainda mais o impacto emocional e a empatia. Essa abordagem poderá oferecer novas métricas para avaliar o valor de um produto de entretenimento, além de bilheteiras e críticas, propondo o que de fato é “sucesso” na indústria do cinema.
O que essa pesquisa revela é que, em uma era de polarização política e social, o poder de uma história bem contada pode ser um caminho para a reconciliação. Ela provê um convite à reflexão: como podemos utilizar a narrativa cinematográfica para não apenas entreter, mas também para educar, provocar empatia e engajamento social? Afinal, pode um filme realmente mudar a forma como vemos o mundo e as pessoas ao nosso redor? E se a resposta for sim, não é hora de pensarmos de maneira mais profunda sobre o que escolhemos assistir?